Por vezes, quando dominamos um tema, assumimos — ainda que sem perceber — uma postura pouco tolerante com quem não tem o mesmo conhecimento.
É uma prepotência disfarçada de segurança. Algo comum, mas que precisamos vigiar em nós mesmos.
Tenho sorte. Ao longo dos meus quase 57 anos, fui guiada por mulheres inspiradoras.
Uma delas, hoje com 89 anos e convivendo com o Mal de Parkinson, foi minha mentora e referência: Dra. Therezinha Sant’Anna Melhem, cientista renomada e botânica de formação.
Com ela, aprendi que boa comunicação é, acima de tudo, simples.
Ela sempre dizia: “As pessoas não têm obrigação de dominar os temas que você estudou.”
Começo com essa lembrança porque ela dialoga diretamente com meu momento atual.
Hoje, ocupo um espaço na vida pública em que se espera que compreendamos a realidade do outro de forma quase instantânea — e, se possível, com soluções prontas.
Meu filho mais velho costuma brincar que eu não converso, eu dou palestras (risos).
Talvez ele tenha razão.
Mas o fato é que aprendi algo essencial: antes de reivindicar qualquer mudança de comportamento, é preciso conhecer a bagagem do outro, trocar saberes e se permitir aprender nessa troca.
O mundo digital nos tirou isso — hoje, recebemos fragmentos cronometrados de uma suposta realidade.
Só depois de um encontro genuíno de saberes é possível, de fato, avançar.
Um encontro com Juliano Moreira
Pesquisando sobre as datas comemorativas do mês de maio, me deparei com o dia 13 — oficialmente reconhecido como o Dia da Abolição da Escravatura no Brasil. Só que não!
Ao analisarmos com mais profundidade as implicações dessa data, percebemos que ela vai muito além de uma simples celebração. A extinção da escravidão, sem qualquer projeto de reparação histórica, gerou um segmento social excluído de todos os direitos, vivendo à margem da sociedade — na miséria, sem acesso à moradia, alimentação, trabalho e sem nenhuma perspectiva de inclusão social e econômica.
Seguindo essa trilha pelo calendário, encontrei o 3 de julho: o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial. Essa data faz referência à Lei nº 1.390, de 1951 — a primeira no Brasil a tratar a discriminação por raça e cor como crime, punível com prisão e multa.
Mais do que uma lembrança legislativa, esse deve ser um dia para reafirmarmos o combate ao racismo em todas as suas formas. Afinal, o fim legal da escravidão não trouxe, por si só, liberdade plena, justiça social ou reparação à população negra.
Pelo contrário: os ecos do racismo estrutural ainda reverberam com força no presente.
Sem entrar nos méritos e complexidades do ato tido como “nobre” pela princesa — cujas consequências foram amplas e, muitas vezes, silenciadas — essa reflexão me conduziu a conhecer uma figura histórica até então desconhecida para mim: Juliano Moreira.
E me surpreendi com a dimensão desse médico baiano, negro, nascido em 1872 — dois anos após a promulgação da Lei do Ventre Livre — que entrou para a história como um dos fundadores da psiquiatria no Brasil.
“Como assim você não sabia?” — talvez alguém pergunte.
Pois é. Não sabia.
E reconhecer isso me fez ainda mais interessada em sua trajetória.
Moreira foi psiquiatra, dermatologista, psicólogo, naturalista e historiador.
Um verdadeiro polímata — aquele que transita por muitos saberes.
Viveu em uma época em que o racismo era legitimado como ciência e enfrentou, com coragem e conhecimento, o discurso que associava doenças mentais à miscigenação.
Ele defendia que os transtornos mentais estavam ligados a fatores físicos e sociais, como:
• pobreza
• falta de acesso à educação
• ausência de condições básicas de higiene
A pergunta incômoda
Será que essa velha ideia de que o “brasileiro miscigenado tem limitações” ainda sobrevive — mesmo que em silêncio — no nosso imaginário coletivo?
E será que a pobreza ainda é vista, por alguns, como simples “falta de vontade de vencer na vida”?
Um dado simbólico (e necessário)
Segundo o Censo Escolar 2024, pela primeira vez na história:
• 40,2% das matrículas em creches são de crianças negras
• 38,3% são de crianças brancas
(Total de 3,2 milhões de matrículas)
Pode parecer pouco, mas é simbólico.
O acesso à educação infantil de qualidade pode transformar vidas — e precisa ser garantido a todas as crianças.
Mas sejamos honestos: isso ainda é pouco.
Poderia (e deveria) ser mais.
Vivemos em um país que ainda deve muito à sua população negra.
Por isso, precisamos falar — sem rodeios — sobre reparação histórica.
Encarar os dados, sem medo
Para compreender a profundidade dessa dívida, é preciso olhar para a história com coragem:
• Mais de 11.400 viagens negreiras foram realizadas no período escravagista
• Cerca de 9.200 tinham como destino o território que hoje chamamos de Brasil
• Pessoas escravizadas eram registradas como mercadoria; embarques e desembarques rendiam impostos
Esses dados estão no The Trans-Atlantic Slave Trade Database, com participação de instituições como a Universidade de Harvard.
O saber começa no reconhecimento da ignorância Sócrates já dizia:
“Admitir a própria cegueira não é fraqueza — é sabedoria.”
Quem tem certezas demais corre o risco de parar de aprender.
O perigo não está na ignorância em si, mas quando ela se acha sábia — porque aí, ela cala perguntas e passa a ditar respostas.
E como nos veem lá fora?
Segundo levantamento do Instituto Paraná, em Portugal:
• 47,7% veem os brasileiros com imagem regular
• 36,5% com imagem boa ou ótima
• 14,4% com imagem ruim ou péssima
• 1,3% não opinaram
Quando me deparo com isso, confesso: dou uma travada e penso:
“Tá certo isso?”
Mas… não foram eles que deixaram os seus por aqui?
Lembro de um ditado que traduz bem esse sentimento:
“Filho feio não tem pai, e mal-educado não tem mãe.”
Reparação histórica — sem enrolar
Seguindo o conselho da Dra. Therezinha, explico de forma simples:
O que é reparação histórica?
É quando o Estado ou uma instituição reconhece que cometeu injustiças no passado — como a escravidão, o racismo institucional ou a exclusão de povos indígenas — e busca corrigir essas falhas com ações concretas, como:
• Pedidos oficiais de desculpas
• Criação de cotas em universidades e concursos
• Reformas em leis e políticas públicas
• Garantia de direitos, como a posse de terras
O objetivo é claro: compensar os danos causados e impedir que essas injustiças se repitam.
“Mas eu não fiz nada…”
Alguns dizem:
“Eu não fiz nada, por que tenho que pagar por isso?”
A resposta é simples:
Você não é culpado, mas pode ser responsável.
A partir do momento em que compreende os processos que te formaram, você pode transformar a realidade.
Se você chegou até aqui…
…eu te agradeço.
Isso já demonstra curiosidade, abertura e, talvez, um desejo genuíno de aprender mais sobre temas que realmente importam — mesmo que, até ontem, você nunca tivesse ouvido falar de Juliano Moreira.
Cientista e humanista, ele nasceu quando a escravidão ainda vigorava no Brasil e transformou, de forma definitiva, a maneira como compreendemos a saúde mental.
Mesmo sem saber, você provavelmente já leu autores que reproduziram seu pensamento.
Foi ele quem enfrentou o racismo científico com conhecimento, coragem e dignidade.
O leitor pode estar se perguntando:
“E os indígenas?”
Bom, todos sabem que sempre estiveram aqui — por isso, a nomenclatura povos originários.
No entanto, seguem à parte das grandes discussões sobre políticas públicas — especialmente em Estados como São Paulo e suas regiões metropolitanas.
Talvez porque, lá no fundo, cada um de nós ainda carregamos a ilusão de que somos os colonizadores, tentando garantir “nossas terras”, “nossas conquistas”…
Pense nisso.