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Harry Shibata: o dom da ubiquidade

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antonio carlos roxo
Coluna de Antonio Carlos Roxo no Visão Oeste

Ubiquidade: capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo.

O médico Harry Shibata, que foi diretor do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo entre 1976 e 1983, participou, na ditadura, da repressão, emitindo laudos falsos para acobertar as torturas realizadas nos porões do regime.

Sua “contribuição” à repressão e aos seus métodos de tortura e de desaparecimento de quem se contrapunha à ditadura civil-militar, no período em que esteve à frente do IML, teve seu modus operandi na emissão de atestados de óbitos forjados, fajutos.

Entre os que sofreram suas sandices está Manoel Fiel Filho, “suicidado” pela ditadura, assim como Vladimir Herzog, com o mesmo destino. No de Herzog lavrou o laudo sem ver o corpo, morto no DOI-CODI.

Sonia de Morais Angel, assassinada por torturas animalescas, devidamente “morta”, segundo Shibata, em tiroteio. Igual laudo para a morte de Antônio Carlos Bicalho Lana.

Em decorrência, Shibata foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) na 6ª Vara Estadual de SP. Sua atuação foi tão acintosa, que em 1980, ainda na ditadura, seu registro de médico foi cassado pelas irregularidades nos laudos, posteriormente devidamente “anulado”. Alegava que nunca vira marcas de tortura, o que não é crível, embora haja denúncias, ironia do destino, de que “ensinasse” o passo a passo aos torturadores na ocultação das marcas de torturas. Se não bastasse isso, ainda foi processado pelo crime de ocultação de cadáver.

Para ressaltar os méritos de Shibata e seu comprometimento com a ditadura civil-militar e seus métodos, foi condecorado pelo Exército com a medalha de… “Pacificador”.

No início da década de 1960, antes do golpe, criou-se o IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, coordenado pelo General Golbery do Couto e Silva, com o objetivo de congregar a oposição empresarial/militar/grande mídia e acadêmica para desestabilização do Governo Goulart.

Além da linha programática que se pretendia implantar no país, a ampliação da base e arregimentação de novos membros, havia um setor Revolucionário, para esquematizar, preparar e deflagrar movimento de derrubada do governo, e sobretudo para assumir a condução da política econômica do regime.

Faziam parte do IPES: Mário Henrique Simonsen, Delfim Neto, Roberto Campos, Gama e Silva e Alfredo Buzaid, entre outros, a elite pensadora serviçal da elite empresarial do país. Também participavam do IPES: Ari Torres, um dos fundadores da Cobrasma, Luis Eduardo de Bueno Vidigal, que sucedera o pai Gastão Vidigal na condução do Banco Mercantil de SP, participante do Conselho da Cobrasma. Assim como Luiz Bueno Vidigal, o professor, presidente da Cobrasma. Luiz Bueno Vidigal, Gama e Silva e Alfredo Buzaid, contemporâneos e diretores em sucessão da Escola de Direito do Largo de São Francisco. Os dois últimos, ministros da “Justiça” do regime civil-militar, Gama e Silva com a “honrosa” elaboração do AI V, entre outros serviços à ditadura.

Luiz Eduardo de Bueno Vidigal, influente líder empresarial de São Paulo, com papel central na condução da campanha financeira que viabilizou o golpe, usufruindo dos ganhos daí advindos. Pródigo arrecadador para a Operação Bandeirantes, órgão repressivo com um banho de sangue pelas costas, financiado pela elite empresarial, banqueiro nomeado para o Conselho Monetário Nacional. Chafurdaram na lama, preço a pagar pelos benefícios daí oriundos.

O golpe, encontra esta turma bem estabelecida, com vínculos fortes com os novos senhores, logo se aboletando em sua estrutura burocrática. O projeto do regime, passa por estas mãos. Estão no centro do furacão, íntimos participantes da confraria resultante do vínculo “carnal” com o centro do novo poder.

No seu bojo há regalias decorrentes de acessos prioritários às decisões e às “burras” governamentais. Aliança e compromisso juramentados: ideológicos, programáticos e práticos.

A Cobrasma engajada em toda esta complexa e lucrativa cadeia de interlocução (haja vista, que com inflação galopante financiamentos estatais eram feitos sem correção monetária ou quando havia era abaixo da inflação) o complexo empresarial militar se beneficiou dos arranjos produtivos do regime com acesso privilegiado ao dinheiro bom e barato do atual BNDES.

Não à toa, Cobrasma e outros grupos multiplicaram o patrimônio exponencialmente. O centro industrial da Cobrasma em Hortolândia erguido com financiamento gigante e estatal em condições “pra lá de vantajosas”.

Shibata é a ponta desencapada da aliança e seus compromissos no submundo da ditadura, o elo de ligação entre o regime e a Cobrasma. A autodeclaração de Luiz Bueno de Vidigal Filho, então presidente da Fiesp e da diretoria da Cobrasma, como empresário fruto da Revolução: “com adversários se conversa, mas inimigos se liquida”; profissão de fé explícita de engajamento ao ideário do golpe militar.

Tal vínculo, ao que tudo indica, implica na contratação de Shibata (19/06/1974 a 1º/01/1983) pela Cobrasma, prestando “serviços” à empresa em período praticamente igual ao de diretor do IML, forjando laudos falsos.

Funcionário efetivo? Não bate, pois ao que se sabe não tinha como Santo Antonio o dom da ubiquidade, ou seja, estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Lembrando, que nem na imaginação mais fértil se tinha, tal como hoje, trabalhos virtuais.

Estas ligações e tudo que acarreta de compromisso, têm que ser expostas, pois como se sabe, ainda há pouco noticiou-se de organização paramilitar que recebia recursos para implementar programa civil-militar de 30 anos no poder. Com igual origem, a tentativa de golpe que culminou com a barbárie de 08/01 sinaliza o perigo permanente para a ordem constitucional brasileira.

 

Autor

  • Antônio Carlos Roxo é Economista pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor pela Universidade de São Paulo.

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